Por muito tempo, assistir à Fórmula 1 aos domingos era um ritual. Cresci vendo os carros acelerando em pistas icônicas como Mônaco, Monza e Interlagos, celebrando as conquistas do Senna e as árduas disputas com seus arquirrivais. Era um universo de alta engenharia, silêncios respeitosos nos boxes e heróis uniformizados sob capacetes coloridos. Mas, também, era um mundo quase inalcançável, 100% masculino e fechado. A linguagem era técnica, o apelo emocional rarefeito e o distanciamento do público, enorme. Ainda que emocionante nas pistas, havia algo estagnado fora dela.
Hoje, trabalhando com comunicação, branding e cultura, olho para esse mesmo esporte com outra lente e o que vejo é uma das viradas de marca mais bem executadas das últimas décadas. A Fórmula 1 entendeu que precisava mudar. E mudou. O que compartilho aqui é uma leitura pessoal e profissional sobre como esse reposicionamento aconteceu e por que ele é tão relevante para quem estuda marcas e comportamento.
Sinal verde - a nova economia da atenção e da propriedade intelectual
Lembro de uma frase do Foucault que me marcou: "cada época tem a loucura que merece". A nossa é a da obsessão por atenção e pelo valor simbólico das coisas. Marcas não vivem mais apenas de produto. Elas vivem de narrativas, de mitos, de presença cultural.
A Fórmula 1 entendeu que sua maior potência não estava apenas na performance das pistas, mas no que representava: sua iconografia, seus sons, seus rituais, seus personagens. Ela deixou de disputar apenas posições no grid e passou a disputar espaço na cultura. Transformou carros, circuitos, troféus e pilotos em propriedade intelectual explorável, criando um ecossistema onde tudo pode virar colaboração, experiência ou produto.
Curva 1 - entretenimento além das disputas na pista
Quando vi o primeiro episódio de Drive to Survive, entendi que algo tinha mudado. Aquilo não era só sobre automobilismo e modalidade como nós conhecíamos. Era storytelling em alto nível. Uma série documental com emoção, vulnerabilidade, rivalidade e humanidade. A Fórmula 1 se humanizou. Abriu os boxes, os bastidores, as personalidades. E, com isso, conquistou um novo público. Jovens, mulheres, curiosos, gente que nunca se importou com uma tabela de tempos, mas que se apaixona por uma boa história.
Curva 2 - o fandom está mudando e moldando o valor
Quando comecei a assistir à F1, quase não via mulheres comentando – com raras exceções da grandiosa Mariana Becker. Hoje, esse universo é outro. De 8% em 2017 para 41% em 2025. Isso não é apenas um crescimento do público
A Fórmula 1 se transformou em matéria-prima para criadoras de conteúdo que analisam desde estratégias de corrida até figurinos dos pilotos, campanhas publicitárias e muito mais. Plataformas como TikTok, Instagram e Twitter (ou X) tornaram-se extensões do paddock — a área onde se concentram as equipes, os pilotos, os patrocinadores, os jornalistas e outros envolvidos na competição.E isso tem valor real. Em 2024, a F1 foi o segundo esporte global com maior geração de mídia espontânea para marcas de moda. Um salto de 35% no Earned Media Value. Só isso já diz muito.
Curva 3 - o piloto como plataforma cultural
Lewis Hamilton sempre foi gigante nas pistas. Mas foi fora delas que ele virou um avatar dessa nova Fórmula 1. Em 2024, ele assinou uma coleção com a Dior, junto de Kim Jones. Tecidos nobres, influências africanas, sustentabilidade. Uma coleção que respira identidade e reinventa o luxo.
Pouco depois, lançou uma colaboração com Tyler, The Creator, misturando sua marca +44 com a Golf Wang, com peças inspiradas no GP de Las Vegas e no universo das corridas. Camisas com estética de cassino, jaquetas de moto, medidores de pneus estilizados. A F1 como linguagem pop, remixada pela música e pelo streetwear.
Curva 4 - moda, estética e luxo: a fórmula do desejo
Sempre me fascinou a estética da Fórmula 1. Mas, agora, ela virou capital de marca. O design dos carros, os uniformes, os capacetes, os circuitos urbanos. Tudo é visualmente poderoso e ativado como linguagem de desejo.
O movimento foi tão forte que, em 2025, a Rolex foi substituída pela LVMH como patrocinadora oficial. Louis Vuitton, Moët Hennessy, TAG Heuer. O paddock virou vitrine do luxo global. Dior, Puma, Tommy Hilfiger, AlphaTauri estão ali, colando suas narrativas na alta performance e na sofisticação.
Curva 5 - Colaborações e códigos culturais: LEGO, gastronomia e criatividade
O que mais me impressiona é como a F1 expandiu sua presença através de colaborações criativas. No GP de Miami de 2025, vi os pilotos desfilando com carros funcionais de LEGO, feitos com 400 mil peças. Uma ação genial que mistura nostalgia, infância e viralização.
Outros exemplos mostram a mesma inteligência cultural. Gordon Ramsay levou alta gastronomia ao Paddock Club com o Ramsay’s Garage. A Patrón, marca de Tequila Mexicana, criou um lounge exclusivo no aeroporto de Miami. Marcas de beleza como Estée Lauder estão, agora, colando sua narrativa à performance e à imagem das pistas. A F1 virou um canvas colaborativo.
Linha de chegada: quando branding vira motor de cultura
Hoje, a Fórmula 1 é um hub de cultura pop, comportamento e estilo de vida. Seus troféus são assinados por grifes, seus carros viram brinquedos de luxo, seus pilotos são tratados como influenciadores e embaixadores de valores contemporâneos. Seus circuitos inspiram playlists, editoriais de moda e campanhas publicitárias.
Os resultados falam por si. A audiência da ESPN nos EUA cresceu 28% entre 2018 e 2022 e fechou o ano de 2024 com uma média de audiência de 1,13 milhão de espectadores por corrida. Drive to Survive alcança 7 milhões de espectadores por temporada. A F1 soma mais de 826,5 milhões de fãs globalmente e é um dos esportes mais engajados no TikTok, especialmente entre mulheres e jovens.
Como disse Stefano Domenicali, CEO da F1: "queremos que nossos fãs tenham um relacionamento de 365 dias com a Fórmula 1".
Eles conseguiram. A F1 saiu do grid e entrou na cultura. E isso, para quem trabalha com marcas, é muito mais do que velocidade. É significado.
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